Angústias e alegrias a dois ou Cenas de um casamento


As variações enigmáticas e complexas de uma longa vida em comum são a tônica de Cenas de um casamento (Scener ur ett Äktenskap, 1973), mais um dos preciosos exemplares da carreira de Ingmar Bergman. Concebida inicialmente como uma minissérie para a televisão sueca, a obra ganhou posteriormente uma versão cinematográfica a partir da aglutinação de seus episódios. Em destaque na tela, estão Marianne (Liv Ullmann) e Johan (Erland Josephson), um casal que está junto há dez anos e ostenta uma felicidade conjugal daquelas de fazer inveja aos mais mesquinhos. Na sequência de abertura do filme, eles são entrevistados por uma jornalista que se interessa por conhecer o segredo daquela união estável e relativamente longeva. Então, Johan tem a palavra, explicitando aqueles que, segundo ele, são os grandes motivos para que aquela relação venha dando certo ao longo dos anos de convivência. Ele, um professor universitário. Ela, uma advogada especializada em direito familiar. Johan diz que eles não poderiam ser mais felizes, e chega a apresentar um sarcasmo arrogante ao enumerar as suas qualidades e as de sua esposa.

Esse trecho inicial é bastante resumitivo da perspectiva que Bergman insere ao espectador a respeito desse casal. Mesmo que estejam abrindo sua intimidade para uma entrevista, eles ainda não estão totalmente abertos. Há entrelinhas naquela união que, pouco a pouco, vão sendo reveladas. O diretor comentou, em uma das vezes em que discorreu a respeito de sua obra, que Cenas de um casamento lhe consumiu algumas semanas de escrita, no que tange ao roteiro, mas que ele teve uma vida inteira para viver todos aqueles momentos vividos por Marianne e Johan. A suposta estabilidade do casal é apenas a superfície de ambos. Eles não são exatamente um poço de harmonia, e isso se traduz, antes de mais nada, no desconforto que lhes provoca a reunião com Katarina (Bibi Andersson) e Peter (Jan Malsmjö). O casal amigo dos dois está em franca crise, e não consegue disfarçar com o verniz da polidez o enfado pelos anos juntos. Com isso, despejam verdades incômodas e preocupantes na frente de Johan e Marianne, a quem chegam a “acusar” de serem bonecos de cera que não têm a menor ideia do que é viver como gente de verdade.

Para cinéfilos atentos a referências, citações e tributos – elementos que permeiam o cinema há tempos e tempos – há que se notar que esse primeiro momento do filme claramente serviu de inspiração para que Woody Allen filmasse Maridos e esposas (Husbands and wives, 1992), que, a exemplo do que Cenas de um casamento representa para Bergman, contém traços de sua vida particular. Para além de correlação com fatos pessoais, entretanto, o longa de Bergman sobrevive como um potente tratado das relações amorosas, que atravessa o tempo e revela sua atualidade mesmo tendo quase 30 anos de existência. As fragilidades que a união entre duas pessoas pode apresentar não escapam ao olhar do realizador, que abarca uma série de temas afins a essa instituição que remonta aos tempos bíblicos, cuja instituição deriva do desejo divino de contemplar seres humanos aos pares e felizes. A estrada a dois, contudo, será sempre pontuada por percalços e acidentes, alguns contra os quais lutar, outros os quais relevar. E, na exposição das rachaduras entre Marianne e Johan, Bergman consegue novamente um estudo de personagens fascinante, seja pelas suas qualidades, seja pelos seus defeitos extremamente humanos.


Entre as várias qualidades que podem ser apontadas no filme, uma das principais é, seguramente, o texto muito bem escrito , cuja autoria coube ao próprio diretor. As palavras quase sempre exalam sinceridade e, quando não o fazem, um gesto ou um olhar dão conta de exprimir aquilo que realmente se passa com o casal. Não há reducionismos aqui: tanto um quanto o outro se mostra em vários lados, corroborando a ideia de que a fragmentação é parte integrante da composição de cada indivíduo. Avesso a qualquer formatação e opinião pré-concebida, Bergman examina Johan e Marianne e deixa que o público escolha de que lado prefere ficar, se é que se pode falar em lados quando se trata de um relacionamento a dois. De qualquer modo, mesmo que a decisão do espectador seja a de torcer por um deles, é bem provável que suas impressões mudem a todo tempo, à medida que o filme transcorre e mais e mais aspectos da natureza dos personagens vão vindo à tona. E, de nada adiantaria um texto tão transparente se o diretor não contasse com os desempenhos assombrosos de Ullmann e Josephson. Velhos conhecidos de Bergman, eles são escolhas acertadíssimas, demonstrando mais uma vez o quanto são intérpretes talentosos.

A possível oscilação entre estar ao lado de um ou de outro se deve especificamente ao fato de essa dupla de atores mimetizar tão bem uma série de angústias humanas em falas, entonações, movimentos e tantos outros recursos dramáticos de que fazem uso brilhantemente. Praticamente todo o filme traz apenas os dois em cena, em longos diálogos reflexivos não apenas sobre o tempo que viveram juntos, mas sobre uma vasta gama de componentes da própria condição humana revestidos de uma aura cotidiana. O curioso é que os filhos que ambos tiveram são apenas citados, assim como Paula, a amante que Johan arranja a certa altura e que responde pelo fim da sua relação “oficial” com Marianne. Tudo o que sabemos a respeito desses personagens é vem exclusivamente dos lábios da dupla, com todas as ressalvas que possam ser feitas diante dessa atitude. As mais de duas horas e meia de Cenas de um casamento acabam funcionando como uma longa sessão de terapia em que não há temas proibidos: nada é calado e tudo é investigado com lente de aumento, potencializadora da alegria e da dor. E, a cada vez que um deles chora ou sorri, também choramos o seu choro e sorrimos o seu sorriso.

Existem muitas versões para o filme. A original tem mais de quatro horas de duração e, o mais impressionante é que não se chega ao cansaço com a poderosa radiografia de Bergman. Sua capacidade de identificação foi tanta que lhe rendeu uma fama negativa: depois de sua exibição na televisão sueca, o número de divórcio entre os nativos aumentou consideravelmente. Decerto, essa não era a intenção de Bergman, mas, uma vez concebida, uma obra tem autonomia, e não pertence mais ao seu autor, cabendo ao público a sua apropriação particular, lendo-a com base em sua bagagem individual. E um outro fator interessante responde pelo enorme sucesso de Cenas de um casamento: Bergman foi obrigado a trocar o número de telefone da sua casa por conta dos inúmeros telefonemas de fãs ardorosos que recebia, uma prova cabal do quanto a obra mexeu com as pessoas e, ainda hoje, é capaz de mexer. Mas não se poderia esperar menos de um filme que escava tão habilmente segredos e sentimentos de pessoas absolutamente comuns, que reúnem em si tantas similitudes com quaisquer outros homens e mulheres que existem por aí. Marianne e Johan alternam desejo e repulsão um pelo outro e demonstram o quanto as pessoas podem ser instáveis quando se trata de assuntos do coração. Longe de explicar ou traduzir totalmente a lógica complexa que atravessa os relacionamentos, o filme é um atestado perene da grande dificuldade de sublimar incongruências e olvidar turbulências em prol de uma vida em comum.

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