O amigo americano e o lado sombrio do homem

Jonathan Zimmermann (Bruno Ganz) é um moldurista alemão de vida pacata e casamento morno que descobriu recentemente estar com uma doença grave e incurável, e morrer por causa dela será uma questão de tempo. Seu caminho se cruza com o do misterioso Tom Ripley (Dennis Hopper), um homem misterioso e de poucas palavras que o envolve em uma trama de assassinato cujas complicações vão surgindo em cadeia. Esse é o mote de O amigo americano (Der amerikanische Freund, 1977), o retorno de Wim Wenders às cores depois de uma passagem pelo preto e branco apenas um ano antes com No decurso do tempo (Im Lauf der Zeit, 1976). Pela segunda vez consecutiva, o realizador coloca em discussão os valores intrínsecos à amizade, apresentando um relacionamento dessa natureza entre dois homens forjado em circunstâncias algo casuais.

O protagonista não tem nada a perder agora que sabe da proximidade da sua morte e, então, aceita fazer parte do plano do gângster cujo mentor é o tal Tom Ripley. O segundo depende do primeiro, mas a recíproca não é verdadeira e, entre eles, desenvolve-se uma estranha simbiose a partir do momento em que passam a dividir o segredo do crime. Ao contrário da sincera amizade entre os personagens principais de No decurso do tempo, aqui não há espaço para o florescimento de um afeto entre Jonathan e Tom, apenas uma relação mediada pelos negócios e que acaba se configurando em laços superficiais e de conveniência, sobretudo da parte de Tom. Em paralelo, Wenders oferece uma releitura bastante particular do faroeste ao pincelar a trama de elementos comuns ao gênero sem, contudo, transformar o filme em tal.

O ritmo imposto pelo diretor em O amigo americano é mormente lento, como de hábito em seus trabalhos. Mas não se trata de uma lentidão aborrecida, que faz o tempo parecer longo demais e provoca o tédio. Muito pelo contrário. O cineasta sabe usar silêncios e obliterações em prol da narrativa, e deixa por conta do espectador algumas inferências importantes que responderão diretamente pela sua relação com a história. Há apenas um único momento de ação genuína em uma trama que, a princípio, poderia ser coalhada de instantes explosivos. Trata-se de uma sequência ambientada em um trem em movimento que apresenta uma perseguição alucinante pelas dependências do veículo, que deixam Jonathan ofegante. À parte esse momento, há muita contemplação espargida no enredo, um desafio para um público aficionado por reviravoltas mirabolantes. O frenesi dos personagens é sobretudo mental.


Um dos grandes achados do filme é a presença de vários diretores dando expediente como atores, entre eles Nicholas Ray e Samuel Fuller, que interpretam criminosos da laia de Tom, assim como os demais realizadores que desempenham essa função na história. Chega a ser divertido procurar por eles ao longo da trama, já que são participações relâmpago e, por vezes, fora de cenas-chave. Para além desse detalhe, O amigo americano é um filme que ganha seu espectador aos poucos, sem grandes estripulias narrativas ou visuais, apoiando-se apenas na força de seus intérpretes e no roteiro bem escrito pelo próprio Wenders, que começava a dar sinais mais evidentes de seu fascínio pela cultura estadunidense a partir desse longa, o qual pode ser considerado uma espécie de divisor de águas em sua carreira, especialmente pela presença de atores não alemães em seu elenco, o que ainda era muito raro em sua filmografia até então. Esse entusiasmo pelos EUA se intensificaria nos anos seguintes, até culminar no hiperestadunidense Estrela solitária (Don’t come knocking, 2005), homenagem explícita ao western.

A base para O amigo americano veio de um romance de Patricia Highsmith, cuja escrita já havia seduzido Alfred Hitchcock e o levou a filmar Pacto sinistro (Strangers on a train, 1951), cuja ambientação principal também era um trem em pleno movimento. O personagem Tom Ripley, aliás, também já tinha aparecido em O sol por testemunha (Plein soleil, 1960), de René Clément, bem como o seu caráter dúbio, o seu olhar enigmático e a impressão de que estava sempre na iminência de colocar em prática algum plano sórdido. E voltaria a surgir, inclusive no título, em sua refilmagem, O talentoso Ripley (The talented Mr. Ripley, 1999), apresentando uma conduta igualmente escorregadia e amoral. O longa teve uma continuação, O retorno do talentoso Ripley (Ripley’s game, 2002), cuja trama mantinha independência quanto ao remake. A autora, na verdade, escreveu mais de um livro com o personagem, e nem todos os filmes que contam com Tom Ripley são adaptações provenientes da mesma obra. No caso específico de O amigo americano, é possível entender que, quando um homem não tem mais nada a perder, tudo o que vem é lucro. Wenders atesta essa verdade horrenda em planos desconcertantes e uma narrativa eminentemente lenta cujo efeito é pulsante, um oxímoro típico de seu cinema.

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